Ouro Verde: memória e reconstrução
Às vésperas de sua reinauguração, depois do incêndio, o Teatro Ouro Verde desperta lembranças emocionadas do público e dos artistas
Fotos: Gustavo Carneiro
Reformar o Ouro Verde, depois do incêndio, foi um desafio: era preciso manter a essência do projeto de Vilanova Artigas e reconstruir tudo com as adequações tecnológicas contemporâneas
Há cinco anos, Londrina perdia num incêndio o maior ícone da cultura da cidade: o Teatro Ouro Verde, parte da vida e do imaginário da população. Enquanto se espera a sua reinauguração, prevista para junho, a FOLHA foi buscar relatos que tratam da história e da saudade do principal teatro da cidade, que teve seu início como cinema.
Um filme na memória
"Eu entrei naquele salão enorme, pisei no carpete macio, as luzes piscaram coloridas. A cortina abria sozinha, era tudo automático. Eu fiquei encantado!". Paulo André Chenso tinha oito anos quando entrou pela primeira vez no Cine Ouro Verde. Vindo de Cafeara (PR), não conhecia avião, nem edifício. Em 1959, a sala já tinha sete anos de funcionamento. "Era como um parque de diversão, o cinema lotava. Eu saía da Vila Recreio, pegava ônibus na BR-369 quando ainda era tudo barro. Eu caí muitos tombos naquela lama", ri. A primeira sessão foi um pouco assustadora, muita movimentação: barulho, carros, carroças, e a ilusão de poder ser atingido pelas cenas. E foi. Paulo passou a amá-las com intensidade e passou a consumi-las em revistas, jornais, livros. Viveu intensamente o cinema, a essência do novo pensamento.
Quando moço, trabalhava e estudava durante a semana e aos domingos não perdia a sessão. Espectador assíduo, o Cine Ouro Verde parece ter virado filme na memória. "Eu conheci cada pedra, cada granito, cada filete. Eu conhecia tudo! As poltronas Cimo, basculante... A gente assistia ao filme deitado. A decoração de mármore, o piso acarpetado, o ar-condicionado moderno, a cortina vermelha era de um veludo italiano importado, era tudo de primeira, era luxuoso. O espetáculo já começava antes do filme, era incrível!".
Fora da sala de exibição havia ainda a convivência entre jovens de diferentes lugares e classes sociais, negócios milionários de café foram fechados no Bar Líder, próximo dali. O salão pertencia ao edifício Autolon, propriedade dos sócios Celso Garcia Cid, Jordão Santoro e Ângelo Pesarini, e tinha como objetivo trazer movimento ao prédio comercial. Deu certo. Projetado por Vilanova Artigas e executado por Rubens Cascaldi, o cinema contava com arquitetura e equipamentos que levavam os espectadores à modernidade. Foi inaugurado em 24 de dezembro de 1952 e em 1978 estava à venda, podendo se tornar qualquer outra coisa: banco, igreja, loja. Foi com a união entre Governo Federal e Governo Estadual que o Ouro Verde foi comprado e passou a ser administrado pela Universidade Estadual de Londrina – UEL.
O velho cinema desperta lembranças emocionadas, há espectadores que se recordam de cada detalhe, desde a fachada ao seu interior
Teatro: personagens em carne e osso
De um dia para outro, o cinema caiu nas mãos de Carlos Eduardo Lourenço Jorge, que trabalhava na universidade desde 1976. Jornalista, considerado um dos principais críticos de cinema do país, pela primeira vez iria administrar uma sala de exibição. "Eu dormi numa noite de 1978, não havia nada, e acordei com o Cine Ouro Verde no meu colo", relata reconhecendo o tamanho da responsabilidade. Com nova funcionalidade, houve reformas para que o espaço começasse a receber também espetáculos, nascia assim o Cine Teatro Universitário Ouro Verde.
A partir daí, as artes se encontraram. O filme "Pixote" e o espetáculo teatral "Macunaíma" dividiram o mesmo espaço. Foi improvisado um alçapão para que "o herói sem nenhum caráter" nascesse da terra no meio do palco. Elis Regina, Projeto Pixinguinha, balés, recitais, orquestras, as atividades se multiplicavam. Grandes espetáculos vieram a Londrina, muito por conta do Festival Universitário de Teatro, que depois se tornou o Festival Internacional de Londrina, o FILO. Com início em 1968, o festival se fortaleceu tendo como principal palco o Ouro Verde. Juntos formaram uma cidade crítica, amante da cultura.
No palco e nos bastidores
Paulo Braz, ator, coordenador e curador do Filo, se lembra da primeira apresentação que fez no Ouro Verde, na década de 80 quando ele tinha 15 anos. "Extra! Extra! Leia hoje na Folha de Londrina, Luz del Fuego, pela segunda vez na cidade!", era a sua fala como vendedor de jornais no espetáculo "Bodas de Café", montado pelo grupo Proteu, dirigido por Nitis Jacon, com trilha de Arrigo Barnabé. A apresentação foi no aniversário de 50 anos da cidade. Premiado e apresentado pelo Brasil afora, teve aqui sua emoção maior. "Nós estávamos no maior teatro da cidade, apresentando para pioneiros. Contávamos a história deles e isso formou um jogo de cena de muita emoção. Eu, menor de idade, a peça censurada pelo o enredo que se entrelaçava com o momento político, falava-se sobre boias-frias, MST, prostituição. Mesmo com autorização do juiz para me apresentar, eu estava proibido de ver algumas cenas". Por algumas vezes, Braz teve que se esconder na coxia. Em 1985, foi a vez da peça "Toda Nudez Será Castigada", do grupo Delta, todos tiveram que se retirar e só entrariam com a comprovação da maioridade. Aquela noite ficou marcada pelas discussões, telefonemas, aglomeração na porta e enfrentamento de ações arbitrárias.
O novo saguão foi reconstruído com riqueza de detalhes, impressionando quem chega ainda com saudades do antigo
Em 1992, foi a vez do dançarino japonês Kazuo Ohno mostrar sua arte. Paulo Braz conta que sua presença causou frisson na cidade. "Era bonito vê-lo sair do Hotel Cristal e descer o Calçadão à pé em direção ao Ouro Verde. A imprensa atrás, ele dançava com os meninos de rua. Isso me arrepia até hoje". Suas apresentações lotaram o teatro, atraindo pessoas de todos os lugares do Brasil.
Em 1993, o Cine Teatro passou por reforma por meio do projeto "Velho Cinema Novo", do governo do Paraná, que visava reformar os cinemas do interior. Por ironia, a reforma foi o fim definitivo do cinema. A colocação de spots no meio da sala de espetáculos impedia a projeção. A obra apresentou alguns problemas, em 2003 a UEL enviou relatório ao governo pedindo providências. Mas, naquela década, ninguém imaginava que no futuro o Ouro Verde seria reduzido a cinzas numa tarde na qual a arte, literalmente, perdeu o chão.