Carta escrita em 1936 na floresta.
Foi encontrada uma longa carta escrita no ano de 1936 por HANS KIRCHHEIM . A carta, redigida em alemão, conta da vida nos tempos pioneiros de Rolândia e foi traduzida pela filha do autor, Ruth Bárbara Steidle, em 2001, ao pé da letra, para o português. O relato, publicado em jornal local e algumas vezes lido em voz alta para os visitantes, emociona, principalmente os mais antigos, pelas lembranças que traz.
Rolândia, 26 de junho de 1936
Pois é, agora estamos em nossa casa que ficou maravilhosa e nos parece paradisíaca depois de semanas acampados no rancho dos sem lar descrito na carta passada. Nós moramos cerca de 10 quilômetros do local da cidade, ou melhor, aí começa nossa terra. Dali ainda andamos cerca um quilometro, em caminho próprio, pelo mato. Esse caminho não é aconselhável para pessoas com tornozelos fracos, principalmente na escuridão. Se tivermos tempo ele deverá ser planado. O caminho termina numa pequena clareira na beira da qual se encontra o rancho. Em desacordo com o usual aqui, nós fizemos o rancho com tábuas de meia polegada. Aqui geralmente são usadas tábuas de uma polegada. Os espaços entre as tábuas mal cortadas em máquinas primitivas são tão grandes que nós consideramos as tábuas mais caras um luxo desnecessário. Os bichos e o vento que querem entrar passam pelas frestas. Nos parece que essa questão como muitas outras aqui, não pode ser resolvida por pontos de vista importados. A transferência para cá, da alegria por uma casa sólida, é sem dúvida divertida, porém não precisa ser vista como indispensável. O clima, em todo caso, não coloca exigências notáveis à construção, só é necessário um teto firme, pois a chuva é assustadora, como um dilúvio com brutalidade impressionante. As tempestades, dizem, tem às vezes as mesmas qualidades – ainda não tivemos nenhuma. Nosso teto é, como são os usos da gente do mato, coberto com tabuinhas, encima de vigamento de palmito – isso são palmeiras que crescem como ervas daninhas em grande quantidade no mato, e que são um artigo de importância diária para os necessitados. Seus troncos são de fibras relativamente moles e de fácil decomposição, mas geralmente crescidos retos como velas, por isso podem ser usados com grande facilidade e ganho de tempo nas construções. Eles se deixam rachar com facilidade, tirando-se o miolo, podem ser usados como calhas para conduzir a água. Deitados uns ao lado do outro servem de assoalho (quando molhados são escorregadios como gelo). Com as folhas do palmito, pessoas que ainda não tem pasto alimentam os cavalos que ficam com diarréia e as folhas bem jovens são comidas pelas pessoas com efeitos semelhantes. Em todo caso, os palmitos com sua casca branco-marmoreada são lindos no nosso telhado e nos deixam muito orgulhosos. O teto da casa repousa sobre um esqueleto de troncos não trabalhados. Nossa sala é 7 x 5 metros, dali separado, o dormitório 3 x 3 metros e a cozinha num puxado da casa, 3 ½ x 3 metros. Na frente da casa uma varanda com mesa, banco e as cadeiras dos tios Alma e Max, objetos que são uma esperança para o futuro, pois ainda não temos tempo para usá-los. A sala está mobiliada luxuosamente com móveis feitos do interior dos nossos caixotes. O que esses móveis significam de alegria diária, pelo sentimento de se sentir em casa, é indescritível. Eles trazem para nossa vida o especial, longe do trabalho e das preocupações diárias pelas necessidades primitivas com as quais teremos que nos preocupar nos próximos tempos. As janelas na casa são caracterizadas pelo fato de que no local destinado a elas não são pregadas tábuas. A noite, as aberturas são fechadas por venezianas. Nossa casinha tão jovem já tem um passado agitado. Primeiro, quando a parte do telhado estava acabada, toda a construção caiu, tivemos que começar tudo de novo. Quando ficou pronta, só um milagre evitou que queimasse junto com os grandes montes de árvores derrubadas em volta – e, finalmente, faz alguns dias tivemos que, a toda pressa, tirar nossos belos móveis da casa, pois uma enorme árvore, que estava sendo derrubada perto da casa, ameaçava destruir nosso lindo rancho. Acima do rancho que se encontra numa encosta, se inicia o mato, abaixo, acompanhando nosso riacho está sendo feita a derrubada. Devagarzinho a mata se afasta de nós e, apesar do terror que as pessoas tem de morar no meio do mato, sentimos por cada árvore bonita que tem que cair. Assim, a nossa paisagem em frente da casa cresce, mas onde a mata foi derrubada, resta uma triste devastação. As árvores tombam umas sobre as outras. Folhas e galhos pequenos secam e depois de quatro a oito semanas é colocado fogo. Fica um emaranhado carbonizado de troncos e galhos grossos que lentamente, em dois a seis anos se decompõe. Dependendo do capital de giro pode-se, no interesse de um melhor aproveitamento do solo, conseguir que grande parte seja retirada. Nossa vida está preenchida com planejamento e trabalho. As duas coisas em solo bem incerto, pois experiência e habilidade nos faltam. Mas temos uma incomensurável alegria por aquilo que fazemos e pelo ambiente em que vivemos. Eu acho que já contei sobre a mata na última carta. A mata muda constantemente de feição, sempre parece diferente, não importa onde as viagens de descoberta na nossa terra nos levam. Mais bonita ela é de manhã cedo e a noitinha, pouco antes do escurecer, quando os animais estão em movimento e a gente sente o frescor da noite e uma grande paz. Sobre os animais do mato pouco tenho a contar, eu os vejo mas ainda não os conheço – fora dois: os papagaios, uma bicharada terrível de diversas tonalidades, cujo comportamento faria jus a um cruzamento de pardal e galo. Estão em todos lugares, fazem barulho e são inconvenientes. Onde eles aparecem, os outros bichos vão embora. Os outros animais, sobre os quais posso relatar, são as onças. Segundo as pessoas daqui, os animais selvagens dos quais a gente tem que ter medo – onças e cachorros do mato – em alemão, grandes gatos e uma espécie de lobo. Os dois causam boatos assustadores – os dois são vistos por todos que se aventuram no mato a noite e têm um pouquinho de fantasia. Em honra dos dois, quase todos que entram sozinhos no mato levam uma espingarda consigo. Para nós, essas feras são uma fonte de distração, pois evitam que conversas com pessoas estranhas se tornem tediosas. Imaginem, ontem, numa criação de porcos na nossa região, 36 porcos gordos foram exterminados por onças. Um habitante da mata que mora perto de nós, que trabalha na nossa terra, à noite começou a dar tiros para todos os lados, pois uma onça o tinha mordido na perna.
Comentando coisas desagradáveis da nossa vida também preciso relatar do bicho de pé que penetra nas solas dos pés e lá põe seus ovos que se desenvolvem até que a gente resolve extraí-los com uma agulha de costura – dos carrapatos que, se a gente esteve no mato, é aconselhável verificar se o corpo está livre deles – e as “feridas do clima” um sofrimento terrível que atinge uns mais, outros menos, só poucos felizes são poupados. Devido à mudança sangüínea causada pelo clima (que aparentemente pode durar anos) e, supomos, pela alimentação inadequada e pela sujeira inevitável do nosso serviço, surgem na pele grandes feridas purulentas que penetram na carne e judiam o paciente por tempo indeterminado. Não existe remédio outro que repouso absoluto e boa alimentação – isso para quem pode se dar esse luxo, os outros têm que viver com a esperança que o sofrimento algum dia vai terminar, assim como a pobre Sardinha *) que tem que mancar atrás de suas tarefas, com terríveis dores nas mãos e nos pés. Deus sabe de onde ela tira a constante alegria com que domina suas tarefas causadas, por sempre novas situações imprevisíveis. Da manhã até a noite ela está de pé. A água tem que ser buscada na mina, a cinqüenta metros por um caminho espinhento - A terrível comida de nós pobres, arroz com feijão tem que ser incrementada - como o fogão acabou de desabar, tem que ser cozinhado no chão, na frente da porta. Lavar louça, roupa, limpar a casa, fazer pão e muitas vezes ela tem que me ajudar. Tem que ser discutido o que devemos fazer, como fazer e se podemos fazer. E aí vem alguém correndo por ter seu camarada cortado o dedo fora – e lá vai Sardinha, cinco quilômetros a cavalo, com agulha e linha para acudir. Na volta, ela traz um grande pedaço de pão que ganhou em troca do auxílio prestado e novas idéias doidas que quer realizar imediatamente - isso dá muito trabalho. Essa maravilhosa vida cheia de sensações não vai durar para sempre, com o tempo vão surgir sistema e serenidade, quando nosso negócio andar, quando a casa estiver tão bonita e ordenada como imaginamos e quando todas as atividades deixarem de ser excitantes experimentos novos. Mas então teremos tempo de imaginar coisas novas, tentar e fazer coisas novas. A nossa limitação, vamos encontrar somente na nossa capacidade, pois na nossa terra não temos que dar satisfação a ninguém. Ninguém se interessa pelo que acontece entre os marcos de nossa divisa. Não temos que nos explicar nem declarar qual o espírito que nos sustenta. Aliás, como vocês vêem, o espírito ainda está totalmente absorvido na luta com a primitividade e com nossas condições físicas precárias. Nós queremos superar essa situação o mais rápido possível, pois nossa meta é ter diariamente uma hora de descanso. Uma hora em que não queremos nos preocupar com feijão nem com o tratamento dos pés do nosso Herrmann. Herrmann é o nosso cavalo, por enquanto o único animal doméstico no nosso reino e por isso altamente valorizado. Ele é um súdito modesto que nada mais exige de nós além de que sejam derrubadas para ele diariamente dois palmitos, que lhe sejam dadas algumas espigas de milho e que possa ficar parado na frente da porta da casa. Em compensação ele nos proporciona a comunicação com o mundo externo. Semanalmente, cavalgamos duas vezes para a cidade. Fazemos compras, conseguimos carne e, com sorte, laranjas e alguns ovos. Temos que negociar por um barril vazio que nos sirva de recipiente para água.
Na cidade, temos que procurar trabalhadores que são raros e muito caros. Temos que estar atentos a informações que podem nos ajudar a prosseguir e, temos que verificar o correio. O correio que não é extraviado (grande parte se perde) se encontra num monte, na casa da companhia. Nesse monte, cada um pode procurar o seu. É maravilhoso quando se acha alguma coisa! Alias, aqui só chegam cartas, impressos e amostras sem valor registradas. Pacotes ficam em São Paulo, até que procurações complicadas sejam mandadas com as quais empregados da companhia podem retirá-los. Mas não precisam ser pacotes, cartas, impressos e amostras sem valor já nos deixam muito felizes. Nós nos interessamos por tudo (fora jornal ilustrado) relatórios, revistas e, naturalmente pequenos presentes. Nossos pensamentos sobre o que está acontecendo com vocês estão muito no ar, pois de Berlim não vem cartas. Jornais não lemos, por falta de oportunidade. Tanto mais ouvimos o que movimenta os ânimos dos assentados em Rolândia. Preocupações de lavrador e os defeitos do próximo. Pelo fato de ter que, a conta gotas, conseguir as informações necessárias, a gente fala com muitos e perde muito tempo. Nosso círculo de conhecidos desde o início foi bem grande, pois usamos o tempo em que estávamos acampados nas proximidade da cidade para conhecer muitas pessoas e aprender de suas experiências. Aqui, se encontram pessoas cujo contato oferece uma grande diversidade de atrações. O velho Koch Weser, um senhor de idade, muito simpático que, com bem estar e muito dinheiro, leva a vida de um culto fidalgo europeu, que não teria necessidade de lutar. Ele dirige uma casa que poderia se situar em Dahlem. Seus filhos aprendem o contato com a terra brincando. Uma exceção que tem seus encantos. Tem aqui mais uns casos semelhantes, eles vão nos prestar bons serviços para descanso e para poder pensar em outras coisas além dos problemas diários. A maioria dos assentados é composta por pessoas menos favorecidas, pessoas que têm que trabalhar valentemente, para poder viver do que sua terra produz. Com cuidado e a longo prazo, tem que ser feitas contas, pois, mesmo sendo possível, a nível de Brasil, atingir uma certa segurança, isso leva anos até que a luta pelo pão de cada dia deixe de ser a principal ocupação. A falta de capital impede que investimentos produtivos sejam feitos, com isso o momento de poder ganhar é empurrado para o futuro. É criada a necessidade de gastar o pouco capital existente de maneira altamente improdutiva, na sobrevivência. A terra roxa, a terra vermelha do Norte do Paraná, tem sem dúvida uma grande e variada fertilidade. Não podemos responsabilizá-la se não cumpre as expectativas daqueles que só a conhecem das descrições das pessoas que aqui negociam terra ou estão de outra maneira interessadas na venda. Esses informantes causaram muitos aborrecimentos e dificuldades financeiras. Decepções que não seriam necessárias, pois mesmo sem essas ilusões a existência aqui na mata para quem a aceita como ela é, é uma maravilhosa realização. Os outros se mudam outra vez assim que constatam que a terra tropical exige um longo e cuidadoso tratamento para alimentar aquele que a trabalha. Que a colheita, como em qualquer lugar, depende dos mais diversos imponderáveis. E que, se a colheita foi boa, em dois anos conseguiu somente cobrir os altos custos do desmatamento e alimentar precariamente o lavrador. Temos que saber que aquele que inicia o trabalho na mata em maio só poderá ter uma colheita entre fevereiro e maio do ano seguinte. Que só então terá um pasto para a criação de alguns porcos ou outros animais. E que seu primeiro ganho cresce em campos onde troncos e galhos no chão oferecem resistência à aquilo que se planta. Assim como temos que aprender a conhecer nossa terra, que nunca é qualitativa por igual, a terra tem que aprender a carregar frutos. Para isso, precisamos muito amor, muita paciência e muita serenidade. Quando, por exemplo, constatamos que precisamos de meio dia de trabalho pesado para limpar 15 metros quadrados. Temos que conhecer esse solo a fundo. Se a gente quer revolver o solo ele se desmancha em poeira. Se a gente o deixa como está, ele não só carrega da melhor maneira frutos, como é possível cavar nele poços de 30 metros de profundidade, sem qualquer apoio ou medida de segurança. Só quando chove sobre essa terra, as coisas ficam terríveis. As ruas e caminhos que na seca são perfeitamente duros e usáveis quando planados, se tornam quase intransitáveis quando chove. A gente tem que levar sua bicicleta, que na seca é meio de locomoção excelente, nas costas. Homens e cavalos têm que se esforçar num barro indescritível que freqüentemente impossibilita todo e qualquer trânsito. Aí, se for possível, a gente fica em casa e se alegra com a beleza que lá temos. Quando ontem li numa caixa na frente da casa a inscrição “Santos - Brasil”, pensei: como é grande a distância entre nós! Vocês vêem, estamos nos sentindo em casa aqui.
*) Sardinha era o apelido da esposa do autor da carta, doutora em medicina.