Nonno José e Nonna Paulina usavam escarradeiras, caixas de madeira, de palmo de comprimento e quatro dedos de altura, com um cabo de metro, cheias de pó-de-serra. Ali escarravam a saliva escura de fumar palheiros, cigarros de palha que enrolavam nos dedos com uma habilidade que só vendo.
         Torravam café em casa, em fogão a lenha, na torradeira em forma de bola, com seu cabo também comprido, em cuja ponta ficava a manivela que fazia a bola girar, para o café torrar por igual e sem queimar. Depois, era guardado em lata com tampa bem fechadinha, para não perder o aroma, e cada porção era moída pouco antes de fazer o café, no moinho manual fixado na parede. Um dia botei grãos de pimenta-do-reino no moinho e moí, eles só foram perceber quando tomaram café e tossiram pimenta… e eu ganhei uma bronca daquelas, mas depois o nonno riu, dizendo que era coisa de moleque levado.
Vó Tiana tinha um pavio sempre aceso no quarto, diante de um altarzinho em cima da cômoda, com fotos de santos, estatuinha de São Jorge espetado de flechas. O paviozinho de cera boiava num copo de azeite, espetado numa bolachinha de papelão, e eu menino achava aquilo um prodígio. Mas prodigioso foi quando ela morreu e, pouco depois, o pavio apagou, como se ela tivesse soprado.
Vô João tinha anzóis de ferro de palmo, palmo e meio, forjados na Metalúrgica Minatti, para pescar dourados e pintados no Rio Tibagi.  Vó Tiana cortava dourados de até doze quilos com sua velha faca de cabo de osso, salgava e deixava quarar ao sol. Depois enfiava os pedaços  numa latona de banha, onde duravam meses, até a hora da fritura em frigideira no fogão a lenha, cada pedaço chiava forte ao tocar na frigideira, e o cheiro de peixe chegava até a rua.
Também inesquecível era o frango com farofa que ela fazia. Uma vez fui viajar sozinho de ônibus, homenzinho com dezesseis anos, e minha mãe falou que eu ia levar frango com farofa para comer na viagem, igualzinho a vó fazia e eu gostava tanto. Mas falei que não queria, pensando comigo o que as pessoas iriam pensar, que caipirismo, frango com farofa em viagem! Enquanto ela cozinhava, eu repetia que não ia levar aquilo, e ela continuava cozinhando com a mesma teimosia que herdei.
Quando subi no ônibus, ela simplesmente pendurou no meu ombro um embornal (um embornal de pano, coisa mais antiga e caipira impossível, pensei) e o ônibus partiu. Joguei aquilo no bagageiro e esqueci, até que o ônibus encalhou na estrada de terra com atoleiros terríveis. O motorista e o cobrador pelejaram hora com picareta e enxadão, até desencalhar o ônibus, que logo adiante encalhou de novo.
E começou a chover,  e caiu a noite, e bateu a fome. Abri o embornal, dentro tinha um saco plástico com o frango com  farofa, ovos cozidos e grandes azeitonas entre os pedaços, e uma colher e um pano-de-prato. Que banquete, partilhado com várias pessoas, comendo na mão e bebendo água de chuva colhida em canecão na bica da lataria do ônibus. Alguém arrotou e alguém disse “saúde”, como se o outro tivesse tossido, e todos riram, e depois alguém disse “agradeça sua mãe por nós”, e até hoje ouço aquela voz, a chuva batendo na lataria e outro dizendo “é o melhor frango que comi na vida”.
Saudade também é coisantiga?