Por Ana Claudia Silva ALMEIDA
A pequena propriedade estava pautada na dinâmica do complexo rural. Todas as atividades eram internalizadas na propriedade, a residência, a produção de subsistência, eventual venda de excedentes e o produto para comercialização (café).
De acordo com relatos de Prado (2009), na propriedade havia os animais, como as aves, que forneciam os ovos e a carne; os suínos, que forneciam a banha e a carne; o gado bovino, que fornecia o leite e a carne; e os equinos, que serviam de meio de transporte e para o trabalho na lavoura.
Eram cultivados verduras e legumes nas hortas, lembrando que na colonização todos os lotes tinham acesso à água, ou seja, não havia problema quanto a esse recurso. Existiam as plantações de arroz, feijão, milho, trigo, batata, cebola, alho, mandioca, amendoim, inhame, dentre outros produtos.
As frutas eram fartas, em razão da existência dos pomares. Os produtos industrializados, ainda segundo a entrevistada, eram adquiridos, geralmente, em vendas, (pequeno estabelecimento comercial localizado nos patrimônios, que atendia às necessidades comerciais da população rural, possuía o mesmo porte das mercearias atuais) tais como açúcar, apesar de alguns produtores fabricarem o melado a partir da cana-de-açúcar, macarrão, sal e algumas peças de vestuário. As compras realizadas nesses estabelecimentos, as vendas, não eram à vista. O pioneiro Romualdo Borsari relata que: “As pessoas tinham o compromisso de pagar em dia. Eu podia vender e deixar que me pagassem em até um ano. Não tinha erro, todo mundo pagava, era uma época de fartura. Um tempo para fazer muito dinheiro” (citação extraída do caderno de suplemento especial do Jornal O diário, em comemoração aos 58 anos de Marialva).
As peças de vestuário adquiridas eram poucas, pois segundo Silva (2010) havia o hábito de repassar as peças dos filhos maiores para os menores. Naquela época, a existência de energia elétrica no campo era mínima.
Porém, isso não era problema, e sim uma vantagem, pois diminuíam os gastos na residência. As carnes eram facilmente armazenadas como alternativas à refrigeração, como o caso das carnes salgadas, defumadas e as famosas “carnes de porco na gordura”, procedimento feito com a carne suína, a qual era frita e conservada (imersa) na gordura durante vários meses. Essa técnica proporcionava à carne um gosto bem característico, porém não muito saudável em virtude do valor calórico. Além disso, havia a prática entre os vizinhos e amigos da repartição da carne. Na verdade, quando uma família abatia um animal, a carne era dividida entre os familiares e amigos, nas palavras da entrevistada Silva (2009) “era costume mandar uma ‘provinha’ para cada vizinho e para os amigos que moravam mais distantes”.
Os peixes não AS CARACTERÍSTICAS DA VIDA NO CAMPO... eram armazenados em razão da grande quantidade existente nos rios na época, isso garantia que em toda pesca, a captura do peixe era certa.
O trigo colhido na propriedade era levado até à cidade, nos moinhos, onde o produto era transformado em farinha, que de volta à propriedade era utilizada na fabricação de pães e algumas vezes em macarrão.
É importante lembrar que não havia fogão a gás naquela época; logo, os pães eram assados em grandes fornos a lenha, assim como a comida era preparada nos fogões a lenha. Estes serviam, inclusive, para aquecer o ambiente em época de frio rigoroso. Silva (2010) relata que era obrigação das crianças e jovens buscarem lenhas para abastecer os fogões e fornos, “todo dia à tarde tínhamos que ‘apanhar’ lenha, tinha um lugar só para guardar, pois nos dias de chuva tinha que ter lenha seca”.
Com a mandioca era feita a farinha e o polvilho, com o amendoim era feito o tradicional doce denominado “pé de moleque”. Além disso, de acordo com o entrevistado Oliveira (2009), havia um ciclo interessante do café nas propriedades: ele era cultivado, colhido, torrado, moído e consumido dentro desse espaço.
Nas propriedades maiores este produto era a base econômica. Em algumas propriedades havia energia elétrica, produzida por geradores, no entanto, essa comodidade na época estava restrita às grandes propriedades. É válido lembrar, também, que somente a casa do proprietário era abastecida pela energia, ficando as casas dos colonos desprovidas desse benefício. Isso é narrado nas palavras de Silva (2009): “meu marido sempre lembra que quando tinha jogo do Brasil todo mundo ía para a casa do patrão para assistir, porque ninguém tinha televisão em casa, tinha só rádio a pilha ou bateria”. Importante esclarecer que o termo colono nesse contexto é aquele que trabalha em uma grande propriedade, juntamente com sua família, e mora em uma área destinada as residências da propriedade, a chamada Colônia. Ele não é o proprietário da terra.
Em outras regiões do Paraná, no caso do sudoeste fruto da colonização sulista, o termo refere-se ao pequeno proprietário. A iluminação era feita por lamparinas de querosene, o que resultava em um teto (residência) todo escuro em virtude da fumaça liberada pelo produto. A entrevistada Silva (2010) cita que na época “as casas não eram forradas, então toda a fumaça liberada pela lamparina parava nas telhas, e elas ficavam todas bem pretas”.
Quando havia transmissões importantes na TV, como os jogos da copa, os moradores se reuniam na casa do “patrão” para acompanharem. Segundo comentários da entrevistada Silva (2009), somente os proprietários de posses possuíam aparelhos eletrônicos, tais como a televisão. Depois de alguns anos esse aparelho foi se popularizando, todavia as famílias assistiam muito pouco, apenas em alguns momentos do dia, sobretudo no horário dos telejornais. Isso acontecia por haver dificuldade em recarregar a fonte de energia do aparelho, a bateria.
A carga do aparelho durava conforme a quantidade de uso, em média, conforme Silva (2009), sete dias, mas a recarga era difícil, já que era feita nas cidades, e o transporte do objeto (bateria) era complicado em virtude do peso, do meio de transporte utilizado e das condições do aparelho.
As crianças não precisavam deslocar-se às cidades para frequentarem as escolas, uma vez que havia vários estabelecimentos de ensino no espaço rural em virtude da grande quantidade de crianças em idade escolar residindo nessas localidades. Inclusive, os professores também residiam no campo, muitas vezes era a filha do grande proprietário, que com os recursos do pai conseguiu concluir o curso de Magistério na cidade.
Os materiais escolares não eram levados em mochilas, comum nos dias atuais, e sim nos chamados embornais, feitos em casa com retalhos de tecido, principalmente o jeans. A confecção desse produto era feito pelas mães, pois era comum toda dona de casa ter uma máquina de costura. Os materiais escolares utilizados pelos alunos naquela época, de acordo com Silva (2009), eram oferecidos pelo governo.
É interessante lembrar que não havia transporte público nem particular para levar essas crianças à escola.
O percurso era feito a pé ou no lombo de animais. Entretanto, as crianças só tinham acesso ao primário (atual Ensino Fundamental I), pois o ginásio (atual Ensino Fundamental II) só era ofertado no espaço urbano. Dessa forma, os alunos que residiam até cerca de 10 km da cidade conseguiam frequentar a escola, com a utilização de bicicletas ou até mesmo a pé. As crianças que residiam a uma distância maior ficavam impossibilitadas, haja vista a dificuldade no translado casa - escola.
O mais curioso é que as pessoas que viveram essa realidade escolar recordam com alegria e saudade dessa época. Também é importante frisar que muitos alunos conseguiram vencer as dificuldades e tornaram-se bacharéis em diferentes áreas.
Desde cedo as crianças ajudavam nas atividades das propriedades. Geralmente eram tarefas das crianças tratar de animais, tais como porcos e galinhas, buscar água nas minas (não havia água encanada na época), apartar os bezerros (no final da tarde, os bezerros eram presos no curral, separados da mãe para que não mamassem, possibilitando acumular leite para ser retirado no outro dia de manhã, ou seja, realizar a ordenha), apanhar lenhas para o abastecimento do fogão, levar merenda na roça (merenda era o lanche da tarde; utilizavam o termo roça para designarem a lavoura), dentre outras. Os filhos mais velhos ajudavam os pais na lavoura, inclusive as moças, ficando uma delas responsável pelos afazeres domésticos e o cuidado com os irmãos menores, já que a mãe também se ocupava com o trabalho na lavoura.
Sobre isso Silva (2010) relata: “eu chegava da escola e tinha que fazer todo o serviço da casa, AS CARACTERÍSTICAS DA VIDA NO CAMPO... cuidar dos meus irmãos menores, fazer comida para que tudo estivesse em ordem quando minha mãe chegasse da roça, eu era a mais velha, então era minha obrigação cuidar da casa enquanto minha mãe trabalhava”. A independência da população quanto ao espaço urbano também era percebida na saúde. Muitos “males”, segundo Prado (2009), eram tratados em casa, com a utilização de medicamentos caseiros.
A população rural confiava muito na cura de enfermidades e problemas às “benzedeiras”, que faziam orações, ensinavam remédios, chás e banhos feitos de ervas e raízes. As mulheres não tinham o hábito, e nem condições, de terem seus filhos nos hospitais, e os partos eram realizados por parteiras, estas eram mulheres que auxiliavam as gestantes na hora do parto, com conhecimento sobre o assunto, e cobravam pelo serviço prestado, configurando-se como uma profissão na época.
Quando uma mulher tinha um filho, pondera Prado (2009), as vizinhas logo se prontificavam a realizarem os serviços domésticos para a recém-mãe. Nas visitas ao bebê, os presentes eram bem diferentes dos levados atualmente. Ao invés de roupinhas e brinquedos, eram levadas, muitas vezes, galinhas e frangas para fazer a comida da mãe durante a dieta, a famosa “canja de galinha”, acreditavam que este prato era muito importante para a recuperação e fortalecimento da mãe. Todas as mulheres “guardavam” rigorosamente a dieta dos 40 dias após o parto, pois de acordo com Silva (2009), os problemas adquiridos na dieta só se curavam com a próxima dieta.
A população rural possuía algumas formas simples e peculiares de se divertir. Os homens gostavam de futebol, tinham times amadores e havia muitos campos destinados a esse esporte em sítios maiores, particularmente nos quais haviam colônias. Um fato curioso estava na localização dos campos de futebol, os quais eram improvisados em pastos, e muitas vezes não apresentavam uma declividade propícia para o esporte.
Em consonância com Oliveira (2009), após as partidas ao invés de se dirigirem aos vestiários, o destino era outro, pois na época os chuveiros eram os riachos próximos aos campos.
Os homens também tinham o hábito de frequentar as vendas no final da tarde, muitas vezes somente para bater um papo e colocar “a prosa” em dia, como diziam à época. Raramente os pais chegavam com um doce para os filhos em casa; quando o faziam, era motivo de muita alegria. Silva (2010) diz que esses doces eram principalmente, “paçoquinha”, suspiro e balas. As festas dos padroeiros das comunidades eram verdadeiros acontecimentos, e reuniam muitas pessoas, inclusive de outras comunidades.
Nesta época a maior parte da população era católica, o que fazia com que grande parte das famílias participasse dessas festas. O número de adeptos da religião evangélica era pequeno. Havia muitos bailes, os ditos “arrasta-pés”, que reuniam pessoas de todas as idades; esses eventos ocorriam, geralmente, no final da colheita, quando a tulha (local onde o café era armazenado, ou depósito dos produtos da propriedade já estava vazia, pois esses espaços transformavam-se em ambientes para a dança).
Os casamentos não eram realizados em salões, e sim em barracas montadas nos terreiros da casa do noivo ou da noiva, e o cardápio ficava por conta das mulheres da família. As pessoas tinham o hábito de visitar seus vizinhos à noite, geralmente em noites em que o brilho da lua facilitava a visualização do caminho, aproveitavam este momento para contar histórias sobre suas vidas. Importante lembrar que a maior parte da população era proveniente de outros estados, o que proporcionava à região uma diversificação cultural significativa. Os momentos de convivência, de acordo com Silva (2009), proporcionavam trocas de experiências enriquecedoras.
Todos os anos, durante o mês de maio, aconteciam “a reza do terço”, esta manifestação religiosa ocorria neste mês em homenagem à Virgem Maria. Os moradores católicos se reuniam cada noite na casa de uma família, para juntos rezarem.
Para receber a imagem em casa, as mulheres cuidavam da limpeza e montavam um belo altar, enfeitado com flores e toalhas bordadas. Segundo Silva (2009), era hábito após o terço servirem um chá para os convidados. Foi relatado, também, que muitos namoros da época começavam nessas ocasiões, porque eram as moças que serviam o chá, e dessa forma, muitos rapazes solteiros aproveitavam a situação para fazerem a corte.
Após o terço também havia a prática de um leilão, as prendas eram simples, tais como: frango assado, pudim, bolos, vinhos, doces, leitoa assada, dentre outros. Estas prendas eram todas doadas pelos vizinhos, e a renda dessa atividade era toda revertida à Igreja, como forma de colaboração e agradecimento. Ainda de acordo com a entrevistada, havia uma crença na época que os casais que iniciavam o namoro em situações que envolviam religiosidade (casamentos, terços e novenas) teriam seu relacionamento abençoado, e caso chegassem ao enlace matrimonial não haveria separação.
Ao término do mês de maio e com a finalização da reza do terço nas casas das famílias, havia a entrega das imagens na comunidade, com uma procissão. Segundo Silva (2009), esse acontecimento ocorria no sábado, e no domingo havia a festa do padroeiro, festividade ansiosamente aguardada pelas moças da comunidade, haja vista que era um momento de lazer e oportunidade para interagir com os rapazes.
É importante lembrar, que de acordo com a entrevistada, havia grande rigor quanto ao contato entre moças e rapazes na época, em virtude das regras impostas pelos pais. A dinâmica existente no espaço rural do Norte do Paraná sofreu modificações com o fim do ciclo cafeeiro. As fortes geadas do final dos anos de 1960 e início da década de 1970
AS CARACTERÍSTICAS DA VIDA NO CAMPO..
foram determinantes para a erradicação de extensas áreas de cafezais. As lavouras de café do Estado já haviam passado por fortes geadas em 1953 e 1955, no entanto, a geada de 1975 foi o golpe final para os cafezais e para os produtores que ainda resistiam. Em menos de uma década o “mar de café” presente no Norte do Paraná perdeu totalmente suas forças.
Era o fim de um ciclo, com mudanças econômicas e sociais para o espaço norte paranaense. Estas mudanças não foram imediatas, já que as características da vida no campo permitiram que a população rural resistisse anos após o fim do ciclo cafeeiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS O Norte do Paraná foi colonizado, em especial o Norte Novo, pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, a empresa foi responsável por todos os detalhes da colonização. Foi estabelecido, assim, o tamanho dos lotes, a disposição dos mesmos, a criação e função econômica a ser exercida pelas cidades, e as vias de circulação do espaço. Todo este processo se desenvolveu utilizando o café como produto econômico base para as propriedades que surgiam.
Esta atividade influenciou fortemente o desenvolvimento da região, tornando-a umas das mais dinâmicas em crescimento na época. A atividade cafeeira conferiu à Região Norte características peculiares quanto a organização espacial, uma vez que a estrutura fundiária era, em sua grande maioria, composta por pequenas porções produtivas. Isso fez com que a ocupação da área se desse de forma mais rápida e dinâmica, haja vista o maior número de pessoas envolvidas com as atividades rurais.
Além disso, as propriedades seguiam a dinâmica do complexo rural, ou seja, todas as atividades eram internalizadas, restando poucas atividades e produtos a serem buscados fora, ou no espaço urbano. Além disso, outra particularidade foi conferida pela cafeicultura à região, referente às características sociais no que tange aos hábitos, costumes e tradições presentes no campo nesta época.
Todas as particularidades existentes dentro da dinâmica da vida no campo na época mantiveram os produtores anos após o fim do ciclo cafeeiro de 1975, e da entrada do novo modelo agrícola no norte do Estado.
Realça-se que os produtores rurais não queriam se render, pois além da experiência acumulada com o cultivo do café, também havia a estrutura do lote, a estrutura fundiária, o trabalho familiar não-remunerado, ou seja, muita coisa estava atrelada ao café, não somente no sentido econômico, mas também no sentido cultural e sentimental.
Nesse contexto, a mudança de cultura implicou em uma transformação direta no cotidiano das pessoas.
Apesar do período de resistência às mudanças, haja vista as características que permitiram o adiamento, as modificações vieram e transformaram todo o espaço rural do Norte do Paraná.
As modificações foram além das percebidas na paisagem, pois também afetaram a vida das pessoas, obrigando uma grande massa populacional a mudar hábitos e costumes construídos durante toda uma vida.
As mudanças econômicas e sociais ocorridas no espaço norte paranaense com o fim do ciclo cafeeiro, foram necessárias para a reorganização deste espaço perante a nova realidade presente na região.
pesquisa by josé carlos farina