O genocídio de judeus, ciganos Roma e Sinti, população negra, homossexuais, pessoas com deficiências, opositores políticos e outras populações perseguidas pelos nazistas foi um marco na autoimagem que a humanidade, ou ao menos parte dela, cultiva. Tratam-se de acontecimentos ocorridos no continente europeu nos anos 1930 e 1940, ou seja, entre 75 e 90 anos atrás. É legítimo, portanto, se perguntar: o que esse passado tem a ver com nossa realidade temporal e geograficamente tão afastada?
A memória do Holocausto provocou reflexões sobre temas como genocídios, racismo, desigualdade, progresso e formas de governo. Ela também criou paradigmas e deixou legados éticos para as próximas gerações. Nesse sentido, colaboradores do Museu do Holocausto de Curitiba têm, nessa coluna, utilizado o evento histórico do Holocausto como ponto de partida para discutir diversos temas contemporâneos, dentre eles o ressentimento na política, os genocídios sofridos por negros e indígenas no Brasil ou a relação não-direta entre conhecimento e emancipação.
Dessa vez, o que pretendemos apontar, no entanto, é como essas relações entre o distante e o próximo podem, muitas vezes, ser também bastante diretas. Tal como fazemos nas visitas mediadas na exposição permanente do Museu, comecemos contando algumas histórias individuais.
Max e Mathilde Maier
Max e Mathilde eram um casal de judeus alemães de Frankfurt. Tal como a maioria dos judeus da Alemanha do primeiro terço do século XX, viviam bastante integrados na sociedade alemã. Ambos provinham de meios intelectualizados e se conheceram em um círculo filosófico que discutia a obra de Platão. Max havia combatido pelo exército alemão na Primeira Guerra Mundial e, no período entreguerras, construiu uma bem sucedida carreira como advogado.
Nos primeiros anos de regime nazista, os Maier ajudaram vários judeus a deixar a Alemanha rumo à América. Ao mesmo tempo, também faziam arranjos para a própria fuga caso se demonstrasse necessária. Foi assim que descobriram a possibilidade de vir para o Brasil.
Uma das formas de facilitar o visto era comprar um lote agrícola. No entanto, o governo alemão limitava a quantidade de dinheiro que podia ser enviada para fora do país. Diante disso, surgiu uma oportunidade para alguns judeus e opositores políticos do nazismo. Uma companhia britânica havia comprado terras no Norte do Paraná e as loteado para produção de café e propôs uma triangulação, por meio do qual os refugiados compravam ferro para a construção de uma ferrovia no Sul do Brasil por essa companhia em troca de uma espécie de “vale-terras”. As propriedades eram a então Gleba Roland, hoje município de Rolândia. Cerca de 400 famílias alemãs lá se estabeleceram, das quais aproximadamente 80 compostas por judeus ou classificados pelas leis nazistas como “racialmente judeus”.
Em 1938, pouco após o pogrom conhecido como “Noite dos Cristais”, Max e Mathilde chegaram ao Brasil. Em Rolândia, os Maier se dedicaram à principal atividade econômica da região à época: o café. Passaram o resto de suas vidas em Rolândia – Max faleceu em 1976 e Mathilde em 1997, com mais de 100 anos de idade. Assim, a trajetória de um casal de judeus alemães altamente urbanizado, refugiados do nazismo, acaba se inserindo na história da economia cafeeira do Norte do Paraná.
Virgil Trifan
Virgil nasceu em uma família judia em Radauti, na Romênia, e era ainda um adolescente no início da Segunda Guerra Mundial. Aos 17 anos, foi enviado para um campo de concentração no qual trabalhava o dia inteiro na construção de estradas em troca de uma parca alimentação. Permaneceu lá por dois anos. Apesar de tudo, Virgil sobreviveu ao Holocausto e, em 1948 chegou ao Brasil, estabelecendo-se primeiro em Recife e finalmente em Curitiba.
Na capital paranaense, passou a vender roupas autonomamente até que, em 1959, surgiu uma oportunidade de negócios. A família de outro imigrante, o libanês Kalil Karam – falecido dez anos antes -, estava vendendo a então já tradicional loja de roupas masculinas “Casa Edith”. O comércio, cujo nome é uma homenagem à filha de Kalil, havia sido aberto por ele em 1917 e, desde 1925, funcionava em um casarão na praça Generoso Marques, no centro de Curitiba.
No mesmo ano em que Trifan se tornava proprietário da “Casa Edith”, o centro da cidade, sobretudo a praça Tiradentes, a poucos passos de distância da loja, foi cenário de um episódio conhecido como “Guerra do Pente”. Em 8 de dezembro daquele ano, um policial comprou um pente na loja do imigrante libanês Ahmed Najar. Uma discussão entre cliente e comerciante sobre um cupom fiscal desencadeou uma série de conflitos que duraram três dias. Juntando insatisfação popular, truculência policial e altas doses de xenofobia, foram depredados mais de cem estabelecimentos comerciais pertencentes a “turcos”, como muitos chamavam os imigrantes árabes, alvejando também lojas de italianos, judeus e portugueses. Embora não tenhamos informações se a “Casa Edith” foi atingida, é impossível, dada sua localização, que não tenha sido impactada ou no mínimo obrigada a fechar temporariamente. Após poucos dias, a “Guerra do Pente” foi encerrada – porém, é mais uma demonstração de como a noção de uma cidade acolhedora e harmoniosa, muitas vezes, não passava de um mito.
Virgil Trifan permaneceu com a “Casa Edith” até seu falecimento, em 2019. A loja segue funcionando no histórico casarão azul, uma construção do terço final do século XIX, tombada pelo Patrimônio Histórico.
O local e o global
Não é necessário conhecer as trajetórias de Max, Mathilde e Virgil para compreender a expansão cafeeira de meados do século XX no Norte do Paraná ou o crescimento urbano de Curitiba na década de 1950. Porém, conhecê-las oferece a oportunidade de alargar nossa compreensão sobre o local e o global.
Primeiramente, permite individualizar e dar rostos a esses processos históricos, o que por sua vez possibilita gerar vínculos empáticos. Em segundo lugar, podemos analisar como um mesmo processo histórico – que pode ser o Holocausto, a cafeicultura, os conflitos urbanos de Curitiba ou outros quaisquer – impacta de formas distintas os diversos personagens envolvidos, justamente pelo fato de entrecruzarem processos históricos particulares.
Finalmente, essas duas breves histórias – e tantas outras – apontam para uma desconstrução da oposição entre global e local. Não há, efetivamente, grandes ou pequenas histórias: o que é definido como local ou global geralmente tem mais a ver com relações de poder do que com delimitações geográficas, pois eventos aparentemente independentes entre si se relacionam e se influenciam mutuamente no cruzamento das trajetórias das pessoas envolvidas. O Holocausto pode ser global, pode ser universal, mas é, de fato, um conjunto de milhões de histórias locais, cada uma com suas especificidades individuais.
Sobre o/a autor/a
mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do departamento de História do Museu do Holocausto de Curitiba.
link: https://www.plural.jor.br/colunas/holocausto-e-atualidade/refugiados-do-nazismo-dos-cafezais-de-rolandia-a-historica-casa-edith/
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