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Terras férteis, mentes mais ainda
Na Fazenda Bimini, no Paraná, que foi devastada nos anos 1930 para dar lugar a cafezais, a família Steidle abre mão de ganhar altas cifras com a generosa lavoura de grãos que tomou conta da terra vermelha para desenvolver um projeto de educação ambiental não formal. Eles também preservam a história e atraem milhares de visitantes anualmente sem nada cobrar de ninguém.
texto Wilhan Santin - foto Sergio Ranalli
Há dois anos, ouvi falar pela primeira vez de um alemão “meio maluco”, coordenador de um projeto ambiental informal em Rolândia, cidade de 57,8 mil habitantes, a 20 km de Londrina, no norte do Paraná. Naquela ocasião, como repórter de jornal, fui até lá checar a informação de que ele estaria oferecendo a oportunidade da pintura a índios acampados em um terreno da cidade. Encontrei aquele homem branquelo, de sotaque germânico, descarregando do carro cavaletes feitos de bambu, enormes folhas de papel e potes de tinta vermelha feita do fruto da palmeira juçara. A mãe do alemão o ajudava. Aos poucos, os índios kaingang, até então arredios, venceram a desconfiança e começaram a pintar suas impressões sobre a vida na cidade, a interação com o ambiente urbano, a necessidade de ter dinheiro nas mãos. A atividade terminou com um deles fazendo uma pintura que simboliza a amizade no rosto do alemão.
Comecei a prestar atenção nas coisas que eram promovidas pelo “meio maluco” e sua Fazenda Bimini, até perceber que o trabalho coordenado por Daniel Steidle, “brasileiro com sotaque” como ele se define, merecia estar nas páginas da Brasileiros.
Fazê-lo sentar por alguns momentos e se concentrar nas perguntas é tarefa que exige paciência e tempo. Daniel, 48 anos, desde os 11 no Brasil, é irrequieto. Andando pela fazenda, onde junto da mãe, Ruth (73), da esposa, a professora Dora (43), e dos filhos João Endí (9) e Francisco Erê (7), recebe milhares de pessoas por ano; o homem tem sempre algo para mostrar, uma história para contar ou alguma ideia para expor.
Dona Ruth é mais tranquila, conversa com calma e não preserva suas frases de tiradas inteligentes. Os meninos aproveitam a liberdade da vida na zona rural para gastarem toda a energia que a idade lhes dá de sobra, mas gostam de acompanhar os passos dos adultos. Em vários momentos das “aulas” que são dadas na fazenda, eles se tornam também professores. Dora leciona em uma escola municipal e, quando está em casa, faz a retaguarda para que o projeto siga adiante.
A Bimini fica no meio do caminho entre Rolândia e o distrito de São Martinho, às margens da PR 170. É uma antiga fazenda de café, hoje ocupada pela lavoura rotativa de grãos. Até aí, nada de anormal em relação às outras propriedades rurais da região, que passaram a utilizar a fertilidade da terra vermelha para produzir soja, milho e, em alguns casos, trigo, depois que o café declinou de vez com a geada negra de 1975. Porém, o que a diferencia é o trabalho dos Steidle. Os cafezais ganharam mais uma chance depois de 1975, sendo erradicados de vez em 1981. A resistência se deu por conta da teimosia do avô de Daniel e pai de Ruth, Hans Kirchheim, o patriarca da família, que gostava da cultura.
Sem dinheiro para a necessária mecanização, Kirchheim não teve outra saída a não ser arrendar as terras. O fim do café significou também a extinção da colônia de trabalhadores da fazenda. Felizmente não foi também o fim da memória. Terreirões e barracões de madeira da década de 1940 foram preservados. Na parede de um deles estão fotos dos funcionários feitas a partir de 1968, quando passaram a ser registrados. Eram 45 famílias na Bimini. Restaram apenas duas: a dos donos e a de um único funcionário.
Na época da derrocada do café, Daniel e a mãe já estavam por ali. Ruth nasceu na Bimini, mas depois de se formar enfermeira em São Paulo foi para a Alemanha pensando em estudar mais. Foi lá que conheceu o artista plástico Ferdinand Steidle, com quem teve os filhos Daniel e Manuel, o mais novo, engenheiro mecânico em Florianópolis.
Quando os meninos tinham 11 e 9 anos, ela voltou com eles para Rolândia. Daniel, já no início da adolescência, mostrou interesse por árvores e começou a causar confusão com o avô, plantando, escondido, palmitos. Hans, a esta altura já chamado “Tio João” pelos alunos da escola que fundara, achava que a terra tinha de ser voltada para a produção. Não deviam perder espaço com árvores onde não era necessário. Havia sido comerciante de tecidos na Europa e sustentava que tudo tinha de resultar em lucro. O neto teimava.
De tanto teimar, Daniel acabou ganhando. Aos 90 anos, pouco antes de morrer, Hans plantou a primeira árvore que faria parte da mata ao redor da mina que deu nome à fazenda e estava secando. Em seguida chorou.
Com a morte do Tio João, Ruth ficou encarregada de achar um rumo lucrativo para as terras. Daniel formou-se em Administração de Empresas e fez mestrado em Geografia, Meio Ambiente e Desenvolvimento. Pesquisaram, estudaram, calcularam, procuraram a fórmula da “mina de ouro”.
“Um dia caí na real e fiz o questionamento: para que precisamos ganhar dinheiro?”, conta Ruth. “O maior ganho de dinheiro é gastar só onde é necessário. Assim, percebi que tínhamos o suficiente com o arrendamento. Poderíamos dedicar nosso tempo a um projeto que ajudasse as pessoas a perceber o quão importante é o meio ambiente. Por isso, até hoje temos fama de esquisitos e até de suspeitos”, completa, com bom humor. Assim, em 1993, começou o projeto.
Quatro anos depois surgiu a parceria com a Embrapa Florestas, firmada com o pesquisador Paulo Ernani Ramalho Carvalho, e a Bimini cedeu parte de suas terras para a implantação de três arboretos, com cerca de 400 espécies. É a segunda maior unidade demonstrativa do Brasil em número de espécies.
Outros lugares da fazenda também foram sendo reflorestados, ganhando mais e mais árvores. A mina voltou a jorrar água como antes e os animais voltaram a aparecer. Particularmente os pássaros, quatis, cachorros-do-mato, pacas.
No entanto, o que mais encanta é o capricho em cada detalhe para as aulas de educação ambiental. Os barracões de peroba-rosa se tornaram cenários fabulosos. Os Steidle usam pintura, teatro, música e dança para transmitir a mensagem, que é simples: precisamos respeitar e proteger a natureza.
Os terreirões de café se tornaram pista para aulas sobre trânsito, com carrinhos de rolimã fazendo as vezes de veículos. Um antigo paiol virou uma espécie de museu indígena, conservando objetos encontrados por agricultores da região. As pinturas feitas há dois anos pelos kaingang acampados em Rolândia estão ali.
O casarão, de tábuas de peroba, que foi a morada de Hans e Hildegard Kirchheim, também é lugar de visitação, pois a família ocupa apenas parte dele. É lugar para crianças e adultos presenciarem o modo de vida de 60 anos atrás, com madeira nobre em abundância.
No quintal, um frondoso cedro sobre o gramado enche os olhos de quem está acostumado com o cinza das cidades. Na garagem, pode-se ver um carro popular com motor 1.0. A internet banda larga ainda não chegou por lá. Usam a arcaica discada.
Para ver coisas tão simples, o volume de visitantes é grande: 4 mil por ano. A fama da fazenda só aumenta com a divulgação que acontece de boca em boca. “No ano passado, tivemos a visita de gente de 19 países diferentes”, orgulha-se Daniel. Um deles foi o maestro japonês Daisuke Soga. “Ele veio com um grupo que se apresentava no Festival de Música de Londrina. Empolgou-se tanto que, quando vimos, já estava mergulhado ajudando escoteiros a tirarem troncos de dentro de um tanque de água”, recorda Ruth.
Voltando a andar pela fazenda, Ruth vai apontando “ali será tal coisa, lá faremos outra”. Em seguida, explica que se preocupam em não se acomodar. É preciso manter a atenção dos visitantes. Sobre o futuro, nutrem sonhos. E Daniel volta a falar bastante.
“Aqui poderiam morar muitas pessoas. Esse é meu sonho, mas ainda não sei como fazer para realizá-lo. Talvez a educação seja uma alternativa. Imagine se tivéssemos mais escolas rurais. E isso não é querer serhippie. Estou sendo realista. As cidades estão ficando lotadas”, comenta o alemão que agora deu para sair fantasiado pela cidade para chamar a atenção para suas boas causas. “Debaixo da fantasia não sou mais o ambientalista nem o alemãozinho metido a besta como dizem. Sou apenas um cidadão”, explica. “Um pequeno detalhe: todo mundo sabe que é ele que está debaixo da fantasia”, emenda Ruth, aos risos.
DE UM POEMA NASCEU O NOME BIMINI
Faz menos de um século que a região norte do Paraná cobria-se de uma densa floresta, classificada por quem é do ramo de “estacional semidecidual”, do bioma da Mata Atlântica. No final da década de 1920, a paisagem por ali começaria a mudar drasticamente com o início do plano de colonização que os ingleses da Companhia de Terras Norte do Paraná, subsidiária da Paraná Plantations, colocariam em prática.
Do governo do Estado, os ingleses adquiriram mais de 500 mil alqueires de terra, localizadas entre os rios Tibagi e Ivaí. Terras que se mostravam excelentes para o cultivo do café, cultura que já havia ultrapassado as fronteiras paulistas e chegado ao Paraná.
Para colonizar tudo isso, derrubar a mata e fundar cidades, a cada 15 km era preciso atrair gente, não só do Brasil, mas também da Europa. Para se ter uma ideia da grandiosidade do projeto, ao longo de sua história, a Companhia – que hoje ainda existe com o nome de Melhoramentos Norte do Paraná – fundou 63 cidades, vendeu mais de 40 mil lotes rurais e perto de 70 mil lotes urbanos.
Na Europa, fragilizada pela Primeira Guerra Mundial (1914-18) e assustada com os bastidores que indicavam a iminência da Segunda Grande Guerra, os panfletos da companhia inglesa propagando um “eldorado” em terras brasileiras, com condições excelentes de financiamento e imensa fertilidade, haja vista as florestas que estavam sobre aquele solo, faziam brilhar os olhos de famílias, mesmo aquelas que nunca haviam cultivado um palmo de chão.
Entre os milhares que se encantaram com a propaganda e toparam desbravar o “eldorado” estavam os alemães da família Kirchheim, que adquiriram um lote em uma área reservada aos germânicos, atual município de Rolândia. Foi ainda no navio que o casal Hans e Hildegard – pais de Ruth e avós de Daniel Steidle – escolheu o nome da fazenda que colonizariam. Tiraram a ideia do poema Bimini, de Heinrich Heine. Uma das estrofes, em uma tradução livre do alemão gótico dizia assim:
“Na Ilha Bimini
brota a mais querida nascente;
Da preciosa fonte
corre a água do rejuvenescimento.“
Decidiram que, se na nova terra houvesse uma nascente, o lugar haveria de se chamar Bimini. Como nascentes não faltavam no meio daquela mata, Bimini, uma fonte que mais tarde quase secou pela falta de árvores, é o nome da fazenda.
Daniel Steidle Obrigado José Carlos Farina pelo resgate da matéria do Wilhan Santin! Tivemos muita sorte com ele! Há tantos talentos por aí desconhecidos... Farina: Que seu jeito especial de tirar fotos possa tonar visível tantas coisas bonitas e importantes! Abraço, Daniel
José Carlos Farina HEHEHEHE.. TENHO FEITO O QUE POSSO MEU AMIGO... A MINHA MAIOR PREOCUPAÇÃO HJ É A MESMA DA SUA... NÃO PERMITIR UMA INDUSTRIA DE CHUMBO QUE NINGUÉM QUIS POR SER PERIGOSA....